1.
A teoria mais aceita, mesmo no futuro remoto ao qual a
humanidade se imergiu, para a origem do universo foi a do Big Bang. Proposto
por Georges Lemaître, astrônomo e padre belga, com o nome “átomo primordial”, nomenclatura
alterada para um termo mais neutro que agradasse à comunidade científica.
Estima-se que esse evento transcorreu a uma margem de 13,5 bilhões de anos, e
ninguém sabe o que ocorreu após isso...
Houve
um lugar antes do próprio universo: o sul do polo sul, anterior a 13,5 bilhões
de anos, sob a contagem terrestre, havia um rosto ocluso e adormecido, que em
um dia despertou. Quando se dispôs a abrir as pálpebras, não pôde ver a si
mesmo. Contudo, apercebeu-se deitado em um chão escuro e sem qualquer textura,
circundado pela escuridão fria e sem contorno.
Com
esforço, sustentou o corpo com as mãos, entremeando um gemido. Olhou para cima.
A superfície era negra. Sentiu um peso na mente e ficou atônito, como se
houvesse despertado de um coma profundo. O que esperar de um sono que começa
sem início e se inicia no infinito?
Após
alguns instantes de adaptação, empinou o tronco e se sentou rolando. Olhou para
o próprio corpo. Sua roupa tinha pouco de cor para ser brilhosa e menos de
escuridão para não se mesclar com o ambiente ao entorno. Olhou em volta e viu
apenas escuridão; somente ele delineava um ponto de iluminação tênue e
acinzentada no horizonte. Ficou nervoso e, ao mesmo tempo, desconsolado.
Aguardou no silêncio.
Aguardar.
O que significava? A sua angústia passou após alguns instantes de adaptação. O
pensamento que o acalmou foi o de pensar que não havia diferença discernível
entre a escuridão de fechar os olhos e a de mantê-los abertos. Pôs-se de pé, finalmente,
e andou. Andar é uma tarefa difícil sem um ponto que indique onde se começa e
onde termina, mas, nesse caso, ele tinha quase certeza de estar seguindo uma
linha reta. Voltou cinco vezes para se certificar se realmente seguia uma linha
reta. Não conseguia explicar a luz que vinha de si.
Não
poderia chamar de brilho porque não clareava mais que a si mesmo, e não poderia
chamar de escuridão, pois tampouco se mesclava com o meio. Assim é a visão
ofuscada que ele tinha de se si mesmo e a que cederia para as gerações
subjacentes que viam nele sua insígnia e representação. As paredes e o piso não
refletiram um único feixe de luz.
O
Criador conferiu a própria roupa. Era branca, mas não luminescente, e era
estranhamente sem textura. Tentou esticá-la, mas ficou surpreso, no entanto, ao
ver que a roupa não se desfazia da pele. Era, definitivamente, uma roupa — não
estava enganado quanto a isso —, mas parecia de um tamanho tão perfeito que não
conseguia sequer beliscá-la.
Estava
começando a se angustiar. Dessa vez, pelo tédio. Tocou o chão e tentou
memorizar a textura, uma tarefa extremamente fácil, pois o chão era o mesmo em
todos os lugares, liso e plano. Não havia ranhuras, imperfeições, furos, nada.
Era, na verdade, tão entediante quanto uma chapa de madeira polida. Se ainda
restam dúvidas, pergunte a uma chapa de madeira polida se ela consegue o fazer
rir. Como poderia aquele chão ser tão suave? Quase não havia atrito; ele
parecia, mesmo ali, saber que se de fato não houvesse atrito, ele mal se
manteria em pé, assim como nunca se moveria. Pôs a mão sobre a cabeça e cofiou
mechas do seu cabelo negro. Ele brincou e riu, mas passados dez segundos, se
cansou.
Nesse
instante, encetou o ato de sua vida. Nem imaginaria a imperiosidade daquele
átimo sucedido. Esfregou uma mão na outra. O resultado lhe causou um arroubo
sem igual. Centelhas amareladas surgiram das frestas entre as suas palmas, como
resultado do atrito suave e aparentemente inócuo entre as elas. Não sabia que
conclusões tirar daquilo, mas sorriu de maneira boba para aquilo. Esfregou mais
rápido, e as faíscas amarelas vieram em maior quantidade. Explodiu de euforia.
Era como a ignição para um processo luminescente único e bizarro. A luz amarela
se intensificou até pontos luminosos se engajarem para fora criando uma chusma
esparsa de pequenos vagalumes sem vida, que se multiplicavam à medida que o
contato entre as suas mãos tomava fôlego. Ah, mas ainda não havia terminado. Os
milhares pontos de luz se atraíram e se somaram para resultar em esfera de luz
una. Ele se apavorou. Precisava libertar com urgência aquele indomável poder de
algum modo, mas não sabia como. A sua expressão se agravou e a esfera de luz
cresceu. Em uma medida desesperada se abaixou, chocando a energia contida na
bola de luz com o piso.
A
energia do choque foi sentida em todas as partes e uma onda se expandiu em
forma de círculo, como uma argola luzente. Ela cresceu e desvaneceu. Iniciou o
processo novamente até a esfera ressurgir, mas, em vez de chocá-la contra o
chão, ele atirou-a para frente. A cor amarela, agora estava esbranquiçada
devido à intensidade da luz. Estendeu-se até o infinito em velocidade constante
e reduziu gradativamente até se tornar um mísero ponto de luz e sumir. Ele
fitou as próprias mãos com um sorriso quase involuntário e se gabou consigo
mesmo por sua habilidade seja lá com o quê.
Repetiu o processo uma série de vezes, atirando novas e
belas esferas de luz que estupidamente prosseguiam rumo a lugar algum. Algo
estava mudando. Quanto mais energia emanava, mais sentia que precisava de menos
esforço para produzi-las. Nessa proporção, ele poderia encher aquele lugarejo
de luz, poderia criar a luz, poderia até mesmo ser a luz.
Depois
de ponderar essas hipóteses, parou e baixou as mãos. Entregou-se a um estado de
reflexão profunda e esperou. Foi quando enxergou algo que, em seu lugar talvez
outro houvesse ignorado. Chocar a energia com o solo talvez não tivesse sido,
na melhor das hipóteses, algo salubre a se fazer. Sentiu algo forte, uma
sensação certamente inescrutável e caminhou hesitante até o local, virou-se com
desconfiança e parou. Olhou para baixo, fitando uma parte do nada. Seu corpo e
sua alma exalavam uma convicção incompreensível e para além de si mesmo.
Era
ali, tinha certeza. Acocorou-se e olhou distinto para o chão, apesar de parecer
como todo o resto. Então, fez o qualquer pessoa faria: tentou tocá-lo. Havia
uma protuberância imperceptível ali — somente perceptível em uma área
completamente sem atrito. Pinçou-a com os dedos e eles irradiaram feixes de luz
que pousaram sobre ela. Era um pequeno grão; na verdade, um pequeníssimo grão;
corrigindo, era algo bem menor que um pequeno ponto sobre a cabeça da mais
mínima agulha. Sem se dar conta de que tudo o que existia estava ali, trouxe-o
para perto da vista, o Criador percebeu que nunca o tocava e que, entre a pinça
de seus dedos e o grão havia um espaçamento mínimo. O Criador sentiu a
seriedade do momento e seu foi de sorridente a sério, como se houvesse
amadurecido em segundos.
Era
curioso existir um campo magnético tão forte para um minúsculo ponto no meio de
um nada infinito. No entanto, o que ocorreria a seguir seria ainda mais curioso
— e infinitamente mais estranho.
O
Criador o soltou, mas em vez de cair, o pequeno grão permaneceu flutuando e
emitiu faíscas de luz. Nesse momento insólito e densamente importante, ele teve
uma ideia, no mínimo, maliciosa: friccionou as mãos uma última vez até o ponto
em que se via tomado por energia e o que ocorreu após foi uma relação foi um
íntimo entendimento: o Criador encarou a maturidade e, subitamente, a desatou
em prol de um desejo inocente e fútil, mas que, apesar de tudo, considerava ser
a coisa mais preciosa que poderia existir, e não poderia estar mais certo. O
Criador fechou as mãos banhadas de energia em cima do grão — luz fugiu por
todas as frestas entre seus dedos e, de repente, tomou conta de tudo em uma
única palma — que parecia aplaudir o começo de algo imensurável.
A
mesma coisa havia ocorrido em um lugar próximo dali e surgiu no horizonte como
um feixe de luz esquálido, mas era tarde demais para que ele pudesse
ver. Quando ela se vira, estava estirada com o peito voltado a um chão
escuro e sem textura, circundado por mais escuridão. Sustentara o corpo com as
mãos e rolara, pousando deitada com a cabeça voltada para o céu — também
escuro. Ficou atônita e ofegante, e sentiu um peso na cabeça, um sentimento
triste e repetido. Seu nome era Natureza, que, logo após se organizar e, com
isso, ordenar o funcionamento em torno, criou de maneira incidental algo além
de sua própria compreensão.
Natureza
abriu as pálpebras em uma borda ínfima do universo. Ela o havia moldado de
acordo com alguns dos fundamentos que havia instituído. E o tempo, tal qual se
lê, sempre está a avançar, embora por sua própria vontade, pudesse
transcendê-lo. O universo possuía infinitas funcionalidades e uma delas era a
vida. Natureza edificou um lugarejo para se abrigar de si mesma e detinha o
formato encantador de uma esfera magnífica, onde residia em uma cabana, tanto
quanto humilde, a qual, por sinal, resplandecia à deslumbrante alva da manhã em
seu planeta. O horizonte em si era falso, e ela tinha conhecimento disso. Mesmo
assim, o admirava com arroubo.
Um
pequeno rebento medrava na terra, viçoso e orgulhoso. Em volta deste, havia uma
floresta mista e verdejante, que incluía árvores que alternavam de brotos e
moitas a monstruosas árvores de terra firme — as espécies se permitiriam serem
mencionadas, se todas não fossem desconhecidas ou misteriosas, quase todas.
Todas as plantas pareciam dotadas de uma estranha fúria em seu crescimento, que
lhes estorcia o tronco. As mais altas — acima de cinquenta metros — possuíam
uma tonalidade verde por toda a sua extensão exceto os galhos, em sua maioria,
roxos. Não era, por certo, o melhor lugar para se construir um jardim — a
floresta já cumpria bem essa função —, sobretudo, um jardim de uma única
planta.
A
cabana se localizava ao cume de uma costa alta, acompanhada uma vista
panorâmica do único oceano do planeta. Era verde e cúbica, sem qualquer
pretensão estética. O material de que era constituída pertencia ao tronco das
Árvores Altas, uma madeira hiper-resistente. Com o devido cuidado, um tronco de
uma dessas árvores poderia durar para sempre, além de ser mais tenaz que um
pilar de metal.
A
explicação para tamanha resistência eram as células de tais árvores, que, no
lugar de duas membranas celulares para revestimento, tal qual uma genuína
célula vegetal teria, as mesmas dispunham de três. Isso impedia a infiltração
e, sobretudo, a devastação gerada pelas intensas e monstruosas tempestades que
assolavam esporadicamente a região. Ela conhecia tudo, pois havia regrado com
esmero a imutabilidade das ocasiões. Tudo no mesmo se comporta como o mesmo.
A
estrela que volteava o planeta eventualmente, ainda não havia iniciado
oficialmente seu percurso pelo firmamento. Por essa razão, a única iluminação
até então era uma aurora ensanguentada, que nascia como um recém-nascido.
Talvez por essa razão o começo da manhã fosse tão odiado por ela. Não se
aprecia qualquer recém-nascido que nasça em silêncio.
Da
face da cabana oposta ao abismo, a porta se abriu e Natureza saiu com um
aspecto desgrenhado. Trouxe consigo na mão direita um objeto cilíndrico de
madeira impermeável. Pôs um pé na frente do outro de maneira calma e insegura,
passível de tropeções constrangedores. Segurou em uma rocha logo adiante, onde
aguardava que estivesse. Era baixa, então precisou curvar-se para se apoiar
nela, bocejou. Refocilou e continuou sua caminhada grogue uns três metros até
um canto especial mais à frente, onde nascia um pequeno broto.
Aproximou-se
devagar. Tropeçou duas vezes nos próprios. Sorriu com satisfação. Aquela
plantinha era, há muito tempo, uma fixação de seus cuidados. Natureza se
considerava muito semelhante a ela. As plantas nascem, mas desconhecem o motivo
— não se interessam em saber —, mas mesmo assim, se fazem crescer frutos.
Quando concluem esse processo belo e inestimável, não se indagam “por que eu
fiz isso?” ou “qual a razão?”, apenas doam. E assim ela semeava a sua criação.
Inclinou
o objeto cilíndrico e uma água cristalina verteu dos furos, banhando a folhagem
vívida da plantinha. Dara, a Gigante Vermelha em torno da qual o planeta dava
voltas iniciou sua trajetória aparente no firmamento, isso no exato horário
previsto por ela. As peculiaridades do tempo e do espaço concediam a Natureza,
Ao som esporádico dos pássaros chilreando, um arrebol poético do horizonte no
universo, e o primeiro pensamento que veio à mente de Natureza foi “que jeito
esplêndido de iniciar o dia”.
2.
O conhecimento da expansão — hoje, já constantemente
difundida, trata-se de conhecimento geral e peça vital para o aporte
educacional de um cidadão comum. Contudo, tal teoria defrontou em seu auge um
entrave: a expansão. A energia liberada n explosão primordial cataclísmica
deveria haver se esgotado há muito tempo, suscitando o efeito de desaceleração
no processo de expansão, o que não ocorreu. Fora uma decepção para os
astrofísicos. A proposição de um universo em expansão acelerada não se
encaixava e então com a vitalidade incansável, os pesquisadores do século XX
atribuíram esse fenômeno à energia escura, chamada assim pelo fato de
desconhecerem sua natureza.
Pouco
depois do que hoje é denominado Big Bang, a matéria escura finita se moveu
onidirecionalmente e cresceu em tamanho rumo ao infinito. Sinergias poéticas
coreografaram, fogos-fátuos cintilantes atacaram com uma energia impetuosa.
Nesse meio, berçários estelares queimaram em explosões coloridas, feito brotos
disformes em um jardim de flores de plasma. E haveria de continuar por vontade
assim decretada. Aquilo, que agora se poderia chamar de universo,
estava fervendo de anseio por ser algo mais — e de fato seria. A massa sem
fronteiras se ampliou para o inalcançável e o universo arrefeceu. A expansão,
portanto, se tornou algo vulgar e remoto, mas o Criador não fora capaz de
perceber (o tempo não era uma grandeza para ele e, não sabia até então, mas
possuía um déficit de percepção extraordinário; no ínterim entre seu raciocínio
e sua ação, o universo havia mudado drasticamente e, entretanto, o tempo, para
ele, não era somente algo desimportante, como também incognoscível).
Algumas massas sólidas feitas da matéria restante, fermentada no interior das
estrelas, resfriaram-se. Por meio da fusão de átomos leves no interior de
estrelas, materiais mais pesados foram sintetizados, a tal modo e com tal
perfeccionismo, que, durante seus momentos de contemplação, o Criador
desconfiou de algo, e não gostava de admitir isso. Havia algo interferindo em tudo
— ou alguém.
Ele
se movia a velocidades que infringiam os parâmetros normais de locomoção. A
verdade é que para se mover em uma determinada velocidade, exige-se um gasto de
energia proporcional a essa velocidade; no entanto, em seu caso, a energia
necessária ultrapassava as barreiras do infinito. Estava, de todo, adaptado a
sobreviver no habitat cruel do vácuo. O Criador adorava o universo porque a sua
plenitude emanava de si mesmo, é claro. De onde mais seria? Ele racionou sobre
algumas coisas enquanto via coisas que não conhecia.
A
escuridão era vasta, mas finita; vazia, porém imanente. Dessa vez, podia-se de
fato nominar a escuridão de algo, conquanto seu tecido não fosse muito
palpável. Há, inclusive, quem prefira ignorá-lo — um equívoco bastante comum,
mas não muito recomendável. O Criador passou um tempo irrelevante flutuando — e
havia bastante para isso —, até se deparar com nuvens gasosas fugitivas que não
havia, por assim dizer, planejado. Passou flutuando sobre elas. Havia um ímpeto
dentro de si. Aproximou-se de um turbilhão e viu como tudo era bonito. Em
muitos aspectos, ele divergia do lugar onde havia nascido. Apresentava
múltiplos tons de cores. E quantas cores existem? Infindáveis frequências de
luz. Algumas visíveis, outras não; no entanto, somente ele era capaz de
enxergar todas. Não obstante, algo o incomodava: faltava um toque de
organização em tudo, homogeneidade. Perfeição. Ora, perfeição. Quem a inventou?
Aparentemente, ele mesmo, e se orgulhava bastante disso. Lógico. Mas ele ainda
nutria esperanças de que havia algo mais — mais especificamente, alguém mais.
Até mesmo o Criador de tudo conseguiu admitir a própria solidão.
O Criador parou de se questionar e buscou sossegar. Vagueou
pela matéria escura do universo e contorceu a malha do espaço-tempo para algo
linear e reto, entretanto com poucos e elegantes nuances relativos, uma
sequência de formulações padronizadas abstratas que nunca outro ser poderia
compreender. Assim ele esperava. Adotou uma cátedra “de tudo vale na busca por
retificação” e encabeçou planos ousados para isso. Sua nova criação,
fervilhante, começara a esfriar após insensíveis bilhões de anos.
Esse
havia sido o tempo desde que despertara de um sono profundo. Por um instinto
semi-humano de curiosidade, refez um percurso conhecido e voou até ele e
quando, em suas vagueias, encarou as fronteiras infinitas da própria escuridão
(por extensão, tudo o que existe) e ultrapassou-a. Mas nada estava como antes.
Não. Estivera alheio por tempo indeterminado. Agora no leito infinito flutuavam
mundos aterrorizantes, incompreensivelmente grandes, tão semelhantes ao seu
particular, e multicoloridos.
Com
a avidez rejuvenescida, decidiu que iria explorá-los — se pouco mais do que
isso. Aquele poderia ser o seu palco. Quando se decidiu, deslocou-se veloz por
outros curiosos sistemas estelares diversos do seu e outros mundos, por
definição. Passou por uma anticolisão estelar — um evento no qual duas estrelas
giram uma em torno da outro se afastavam gradualmente pela antigravitação, em
vez de se fundirem. Em seguida pôs os olhos em um planeta específico cuja
frequência de luz era clara e aviventada, a léguas das tonalidades alaranjadas
e envelhecidas que havia encontrado nos seus anos de exploração.
A
superfície era anuviada, em parte efêmera. As frentes de ar se moviam enquanto
a esfera planetária girava, volteando uma gigante estrela vermelha. Executou
uma entrada como de praxe: mergulhou com cabeça, acelerando enquanto rasgava a
atmosfera a velocidades alucinantes. O contato direto com ela incineraria
qualquer objeto intruso que, forçosamente, desejasse adentrar o planeta, mas o
Criador era resguardado por um campo de energia, que figurava uma trilha
amarela lampejante, semelhante às que cometas deixam em sua passagem. Sentiu-se
tão seguro de suas habilidades que abraçou suas pernas e fez giros contínuos,
cada segundo mais rápidos. A atmosfera era distinta e emanava frescor. Em seus
anos de isolamento, jamais havia vislumbrado um planeta tão saudável como
aquele. Foi se desfazendo a ideia de que seres como ele eram livres dos efeitos
do tédio. Estava ali há uma centena de milhões de anos e estava tendo sensações
desagradáveis ao entrever infernos gasosos hiperinstáveis ou ter de agrupar nebulosas
para criar grandes sistemas estelares em cantos remotos da galáxia.
Já
estava sorrindo despreocupadamente quando entrou no cerne de colossais nuvens
cinzentas, semelhantes a um cenário de guerra medieval, com imensos castelos de
gás e campos de guerra com tons obscuros. Os raios passaram a um metro do
Criador. Perpassou o último vapor translúcido e esbranquiçado e inclinou-se
para descer. Os próximos caminhos foram azuis e foi quando se embasbacou e
parou subitamente.
Ficou
frente a frente com a mais fiel representação do que ele chamaria de paraíso.
Grandes coleções de árvores bordavam um rio que serpenteava rumo ao infinito e
o sol-pôr alaranjado adornando os céus. Tudo a distâncias consideráveis dali.
Ficou boquiaberto com a beleza e a perfeição do local. A natureza não era
loucamente gasosa ou incomodamente pequena e fria. Era como se tivesse se
deparado com o equilíbrio natural das coisas — que agora parecia se equilibrar
com os seus gostos — pela primeira vez, o que não era, de todo, errado. O
Criador sobrevoou em velocidade baixa para admirar a paisagem verdejante
daquele mundo — cabe ressaltar que o vagaroso de uns pode ser o veloz de
outros. As árvores se desfolharam com a sua passagem, alguns animais com um
grupo de quadrúpedes com chifres por todo o corpo olharam para cima, mas só
conseguiram flagrar um vulto rasante e o confundiram com algum pássaro
qualquer.
Pousou
os olhos em grandes depressões ao norte e outro espécime de arvoredo povoava
aquelas bandas. Passou também por extensas cordilheiras de montanhas e, em
muitas delas, a água vertendo a formar grandes e estrondosas cachoeiras.
Obviamente, não se absteve de visitar a vida marinha daquele lugarzinho. A água
ocupava uma porção equivalente à metade da área do planeta, fato justificado
porque, na época em que o planeta recebera uma chuva de meteoros que,
porventura, traria consigo as moléculas de água para compor seus oceanos, o
planeta ainda não girava sobre seu eixo, e as partículas de água despencaram
somente em uma face do planeta. Portanto, a água não somente simbolizava
estatisticamente a metade da superfície planetária, como também ocupava
geograficamente a metade.
A
sua experiência abaixo d’água foi simplória e inocente, como uma criança ao
raiar do dia (do seu primeiro dia ao sol), mas ele não conhecia o que havia por
lá. Apenas há poucos minutos, percebeu a presença de algo e parou ao aguardo. A
luz não penetrava àquela profundidade e a pressão hidrostática era abissal, mas
o Criador sentia apenas um leve desconforto.
Foi
quando ouviu o ribombar, como uma corneta no oceano. Saiu das profundezas
escuras, um animal monstruoso que o encontrou pelo caminho — era uma colossal
baleia hexápode que caçava freneticamente um polvo bípede, acima da relva
marinha, que tinha um formato bem peculiar. A sua alegria cessou quando viu a
baleia dentada atacar o polvo. Ela conseguiu decepar um de seus braços e o
animal ferido se deitou na relva marinha. A baleia, então, se ocupou de devorá-lo
ferozmente. O Criador ficou pasmo com aquilo — veio-lhe um sentimento que
jamais sentira antes — e, em um surto de medo e fúria, empurrou a carapaça
grossa do mamífero gigante e, instantaneamente, o animal fugiu. Apesar do
heroísmo, sua ação veio tarde demais.
O
bípede se deitou entre as rosas — elas ocupavam uma área relativamente grande
da área no fundo do mar —, doou ao mar seus últimos estertores e expirou. O
Criador achegou ao dorso do pobre animal e se compadeceu. Tocou-o na cabeça
como se dissesse para ele ir em paz, seja lá para onde.
***
Uma figura diferente da que despertara minutos antes se
sentou em uma cadeira, cujo respaldo era constituído de um aglomerado de galhos
que estavam fixados em um tronco cortado, que compunha o assento e os pés do
móvel. Estava menos sonolenta e muito ativa. Confortavelmente, comia um
menelin. Natureza dera esse nome após uma crise existencial resultante de não
saber como definir quão deliciosa era sua fruta favorita, então achou uma boa
ideia diferenciá-la com um nome específico.
Escolheu
menelin porque pronunciava bem e porque sentia uma vontade irresistível de
comê-lo (o nome e a fruta). O mesmo pensamento se fortaleceu no decorrer do
tempo e, a partir daquele momento, a lógica da Natureza era a seguinte:
qualquer forma de objeto ou ser igual a ela — ainda não tinha certeza se de
fato havia, mas era bom enquadrá-los no raciocínio por via das dúvidas — deve
possuir um nome, do contrário o objeto em questão não existe. A ideia era
simples e razoável, e ela o aceitou de primeira sem cogitar.
É
importante enfatizar que os frutos de menelin são invisíveis para todos os
animais a quem interessa comê-los. O seu envoltório carnudo não reflete frequências
de luz visível, apenas ultravioleta. Por essa razão, os pássaros e animais como
as lagartas, ao voar próximos de uma meneleira, concluíam que a árvore
simplesmente não era frutífera. Natureza era o único ser apto a ver um fruto de
meneleira e fez algo bastante significativo em sua própria lógica: deu nome a
algo que não existiria sem ele.
Enquanto
tentava quebrar um caroço de menelin com o dente, pressentiu algo e parou em
seguida. Pousou o caroço na mesa. Era um sentimento forte, conquanto não
soubesse explanar. Ergueu-se e foi até a janela. Observou toda a amplitude,
escrutinando cada minúcia com cuidado. Mirou os bosques de meneleiras, onde
fisgou um número incontável de frutinhas mais cedo, depois se pôs a verificar o
céu. Depois, o mar. O mar — era nele que a sensação comichava. Comprimiu as
pálpebras em uma expressão astuta, mas não havia nada para os olhos comuns
avistarem. Onde qualquer um avistaria um céu calmo e limpo, Natureza avistou um
prenúncio de algo bastante incomum.
3.
Ao emergir novamente, o Criador estava em outro lugar, com
uma sensação breve de estar também noutro tempo. Aquietou-se com os pés ao
nível do mar e experimentou andar sobre as águas, em uma cena que remete a
outra história. Alguns passos depois — vinte, para ser mais exato —, defrontou
um paredão de terra. Ele estava com a cabeça abaixada e foi levantando, como se
faz quando está diante de uma estrutura muito alta, procurando o cume. Quando o
encontrou, arrepiou-se de medo. Era uma falésia com cem vertiginosos metros e
uma estética robusta, como uma grande muralha.
Decolou,
rapidamente alcançando o píncaro. Não era extravagante nem surpreendente,
exceto por um detalhe: a pequena cabana verde feita de madeira. O Criador a
sobrevoou, visualizando de cima. Ela possuía três buracos quadrados e outro
retangular na face oposta ao mar, todos com uma cor diferente de verde,
forrados com um tipo diferente de madeira.
Não
era uma formação ao acaso, como se acreditasse em semelhante bobagem. Era
artificial e de muito mau gosto, ele pensou. Desceu e cravou os pés no chão e
tateou a parede externa da casa e, constatou que tratava de madeira. Deu voltas
e voltas. No horizonte, havia árvores e um perfil de um lago magnífico. Ele
notou o buraco retangular fechado com um material amarronzado que fazia relevo
ante a parede. Alguém lhe pôs o nome de porta. Ele segurou uma protuberância no
canto à direita, quando ouviu um desfolhar atrás de si. Olhou por sobre os
ombros, e passeou os olhos fincados na moita. Nada.
Então,
percebeu algo bem peculiar. Pouco a frente da casa havia um pequeno
canteiro. Ele era cercado com pedras de silício que formavam o desenho de um
círculo, de modo que fora do círculo, o chão era grama e dentro, um solo marrom
escuro não batido; ele se fendia para dar espaço ao pequeno broto no centro. A
flor cor de prata possui um design vistoso e peculiar. Era como imaginar seu
cálice como uma bacia com as bordas retaliadas em triângulos, suas pétalas, e,
em seu centro, pequenos furos, como os de um chuveiro, de onde jatos de águas
são expelidos e, no ponto crítico, torcem-se e despencam
novamente. O Criador se acocorou ao lado do broto, escurecendo-o com
sua sombra.
Estava
com um encantamento contido, semelhante à curiosidade. Quando suas mãos ficaram
a uma distância mínima entre a flor, tudo foi muito rápido. O barulho entre as
folhas se tornou um rasgo vigoroso, e, enfim, uma forma irrompeu das moitas
lançou-se em sua direção. A forma o agarrou e o arrastou. Os dois agarrados
atravessaram as paredes da casa e despencaram do penhasco.
Debalde,
o Criador tentou se livrar das mãos daquela criatura voraz, mas ela parecia
determinada a exterminá-lo. Quando fez esforço para voar para longe, percebeu que
ela tinha a mesma habilidade e o superou. Atiraram-se com força contra a parede
d’água e afundaram. O Criador não precisava respirar e a sua algoz demonstrou
decepção quando notou isso. Atacou-lhe com socos e inventivas. O Criador sentiu
o perigo. Existia alguém igual a ele, com a mesma força e uma fúria endoidecida
lhe perseguindo. Conseguiu retrucar com um único soco no estômago. Isso a
afastou por milagrosos segundos para que ele decolasse. Rompeu espirrando água
para todos os cantos e espalhando uma escuma. Ia assomando a costa alta quando
uma segunda irrupção, mais furiosa, espirrou mais água e gerou mais escuma
ainda.
Uma
segunda forma emergiu dela. Ele se apavorou ao ver a figura se aproximar tanto,
o que o fez acelerar. Por um fio, conseguiu pousar em segurança ao lado da
residência esverdeada. A forma pousou imediatamente após e
mostrou-lhe uma de suas mãos, que se iluminou com um crepitar forte. Ele já
imaginou aonde isso levaria. Ergueu os braços em um gesto de redenção
primordial.
— Espere! — ele implorou em um tipo de comunicação peculiar
por ondas nunca antes vista. Natureza nunca havia se comunicado com outro ser e
recebido a mensagem de volta. O fulgor nas mãos de Natureza desvaneceu.
— Quem é você? O que você faz aqui? — inquiriu Natureza em
tom de ferocidade. Ela estava em de prontidão para um ataque: as pernas
semicurvadas, os ombros e os braços erguidos em guarda e com expressão que
decerto não indicava boa recepção.
— Eu também não sei.
— Como é? — Instintivamente, ela não sentiu perigo
(habitualmente, confiava bastante em seu instinto) e se tranquilizou.
— Você alterou a ordem. — Natureza disse com vigor.
— Que ordem? — perguntou o Criador.
— A ordem natural — disse ela, solenemente. O Criador
acedeu. Estava em solos além de sua jurisdição.
— Desculpe. Nós somos iguais. Eu creio que permanecer
sozinho em um lugar tão grande e indiferente é o suficiente para enlouquecer
alguém. — ele fez uma pausa para recompor as próximas palavras. — Bem. Na
verdade, eu estou feliz por encontrar outro... de mim por aqui. Pensei que
seria inóspito como o...
— Como o nada. — Completou Natureza.
— Isso. É.
— Então existem outros?
— Bem. Não sei. — O Criador afirmou um tanto dúbio. — Eu ia
perguntar a mesma coisa — Natureza pareceu hesitar, mas estava apenas pensando.
— Qual o seu nome, estranho? — Perguntou, seguindo a ideia
que inventara para as coisas.
— Criador. — Ele, apesar de tudo, não pareceu convicto. Em
verdade, não estava completamente certo se esse era seu nome mesmo ou se era
algo que havia inventado. O nome, por alguma razão, fez Natureza rebaixar a
guarda instantaneamente. Era ele, só poderia ser.
— Criador? — Ela repetiu com ironia. Riu em seguida.
O
Criador se sentiu subitamente ignorante por alguns segundos. Depois retornou à
sua habitual presunção.
— Algum problema? — Ele perguntou.
Natureza
pigarreou encabulada por sua infantilidade.
— Tanto quanto presunçoso. — Ela reagiu, fazendo uma
expressão clássica de evasão, esforçando-se inutilmente para retomar algum tom
ameaçador. — Você tem um segundo nome? — Havia se guiado pela sua mais nova
ideia de que, se há um nome, há um segundo nome. Vai que outra pessoa partilhe
do mesmo nome. O Criador se voltou para a forma feminina diante dele. Em
verdade, não havia um segundo nome, mas ele pensou em criar somente para
ampliar o diálogo.
— Você não vai me dizer o seu? — Perguntou o Criador.
Natureza aquiesceu e pensou ser bastante justo. Meneou a cabeça e disse:
— Eu sou a Natureza. — Replicou ela, secamente.
— Natureza? — Ele repetiu.
— Sim. — Disse Natureza. — Eu digo às coisas como elas devem
ser e o que devem se tornar.
— Essa costumava ser a minha função. — O Criador sussurrou
entre dentes.
— Hein? — Questionou Natureza.
— Ah — Ele retornou. — Nada.
A
tensão entre os lados havia inesperadamente cessado. Ambos se olharam com uma
desconfiança ponderada. Os dois gostariam de quebrar o silêncio e comentar
sobre a impossibilidade de existirem ou a impossibilidade de tudo ao entorno,
mas algo os impedia enquanto erguiam seus indicadores ensaiando uma fala.
Quando
ensaiavam algum comentário, a hesitação tomava posse de suas bocas, de modo que
as palavras morriam na garganta. Tudo isso era irrelevante. O medo deu lugar a
certa condescendência. Ao fim de quinze segundos, Natureza quebrou o silêncio.
— Então. — Disse, pronunciando um vocábulo de cada vez. —
Você gosta de rosas? — O Criador focou no rebento que brotava no canteiro e depois
mirou em qualquer recanto florido no seu campo visual, o que significava todo o
ambiente. Concluiu após um breve intervalo que não as odiava. Por
conseguinte...
— Sim. — Disse ele confirmando com um gesto vago da cabeça.
— Ótimo! Não quer entrar? — O jovem franziu a testa.
Desconfiou dessa súbita simpatia por parte da pessoa que, anteriormente, tentou
matá-lo, mas aceitou o convite somente porque não possuía compromissos para o
resto do dia.
4.
A cabana de Natureza era suficiente para prover conchego e
calmaria, conquanto fosse pequena e sem regalias. Havia um único cômodo, e sua
única moradora executava suas misteriosas tarefas. Natureza puxou a
protuberância da porta e entrou seguida de seu visitante. O Criador vislumbrou
à esquerda uma mesa com lascas de menelin e um caroço semimordido, além de uma
única cadeira estacionada junto a ela.
No
centro, havia vários desenhos esparsos, possíveis projetos, mapas, adornavam o
chão com traços feitos de tintura natural. Frisou, por um instante, um dos
desenhos. Era uma baleia hexápode, igual à que vira minutos antes. Em alguns
desenhos se veriam poemas acompanhando. Acocorou-se para ver e ficou absorto em
seus pensamentos. Ouviu um som que o fez sair do transe e olhou para o lado.
Era o barulho dela abrindo a janela. Quando terminou, chamou-o com voz e gestos
esfuziante. O Criador deixou as pinturas de lado e andou até onde ela estava.
Os dois se comprimiram um ao lado do outro na frente da janela. Havia um
espírito de irmandade entre eles.
— Por onde você esteve? — perguntou o Criador. Natureza
emitiu uma baforada de desdém e ressentimento.
— Estive flutuando.
— Sabe o que nós somos?
— Não. — ela respondeu. O silêncio e a expressão dele confirmaram
a afirmação. — Mas eu tenho uma frase quanto a isso.
— E qual é?
— Somos o que somos. — Natureza contemplou atentamente tudo
pela janela da casa. Vendo essa ação, ele se sentiu compelido a olhar também.
Havia árvores estonteantemente altas, que, mesmo estando a quilômetros, podiam
ser vistas nitidamente dali. Embaixo, árvores menores com folhas roxas estavam
sendo povoadas por animais peludos e nidiformes. Nada que ele já não houvesse
visto: um panorama idílico e bucólico, virginalmente belo. “O que realmente ele
deveria sentir?”, ele pensou em perguntar, porém, preferiu ser mais agradável.
— É maravilhoso. — Expeliu sua mente.
— É muito gratificante saber disso. — Disse Natureza.
O
Criador suspendeu o queixo, surpreso, ao se lembrar dos eventos iniciais,
quando o que encontrou no nada.
— Você criou tudo? — Questionou o Criador com ar
contestador, olhando fixamente para ela.
— Sim. — replicou Natureza.
— Tudo isso? — Uma pontada de um sentimento estranho e
deletério se apossava da mente do Criador, mas ele o ignorou por hora.
— Sim. — insistiu ela. Levitou o indicador até seu lábio. —
Isto é, eu diria quase tudo. Não criei você. Por isso, sinto sua presença
sempre. Ainda não sei o motivo.
— Quem diria. — ele disse, acomodando-se por pressão
própria. Não parecia tão acomodado, na verdade. Exalava uma espécie decepção,
mas sua anfitriã não fora capaz de perceber.
— No sono, projetei-o como para ser para ser algo além da
compreensão. Creio que ainda esteja funcionado, pois eu não o compreendo. —
durante sua fala, entrou em um devaneio e ele a chamou de volta com um toque.
Ela se virou e olhou para ele com improvisos interrogadores. O Criador ficou
igualmente nervoso, pois ela estava bela, uma disparidade do ambiente.
— Você não deve proteger os animais de si mesmos. — ele
afirmou. — o Criador ignorou a afirmativa e segurou na mão de Natureza. Nesse
instante, ambos saborearam a energia cósmica do ordenamento correr por seus
corpos. Algumas faíscas saíram quando ambos deram as outras duas mãos e houve
uma coordenação no ato de dar a outra mão. O retorno à consciência foi tardio.
— Devamos ficar juntos e criar as coisas.
— Está bem. Eu aceito! — ela sussurrou com um entusiasmo
apenas inferido. — Porém. — ela ressalvou. — Tem de ser para sempre.
— Sim. — assegurou o Criador. — é claro.
Esse
foi primeiro dos encontros, o mais importante. Na confraria das vistas, o que
ocorreu foi uma inexaurível troca de poder. Os dois jovens inocentes se
abraçaram, e transcorreu, sob a estranha luminosidade daquele ato, a simbiose
do universo, como se ambos representassem a própria criação. Partilhariam
juntos os tronos que se aprouvessem ao alcance de suas pernas e em concórdia
com a ordem natural. Quando Natureza se desfez do abraço, observou o Criador
com uma cumplicidade peculiar.
— Você gosta de rosas? — Perguntou ela. O jovem rebento no
canteiro cresceu e se transformou uma rosa atípica, prateada e de um formato
peculiar.
5.
Muito embora se sentisse amada — costumava mensurar pelo número
de vezes que o Criador mencionava a expressão “eu amo você” — e presenteada com
toda a atenção possível, Natureza sentia que algo havia mudado entre ambos e
agora não pareciam mais amigados nem ao menos colegados. Não havia mais voz na
sinfonia cósmica e, se havia, ela podia mais ser ouvida. Ela não se sentia
confiável o bastante para partilhar de decisões a respeito de qualquer coisa
que fosse capaz de imaginar. Muito embora não pudesse medir a infindável
energia de si e de seu ladeado irmão congênito, sim, por que não? Não
conseguia, no entanto, redarguir uma única palavra dita por ele e, com isso, a
semente medrava viçosa até se tornar uma poderosa planta carnívora modificada
para alimentar-se de si mesma até que ela mesma não exista mais. Havia algo
mais que ela sentia. Sentia que, para a vida, faltava algo jamais tentado, algo
peculiar, ousado e até ilegal. Grosso modo, a vida era capaz de exercer
faculdades interessantes, como em criar estratagemas para caça e com isso,
buscar alimento, isto é, se seu companheiro impertinente não pusesse um fim a
esse belo ciclo, engendrado por ela com todo o esmero, oferecendo comida e
moradia de modo irritantemente fácil, mas, mesmo assim, lhe faltava um brilho
divino que o tornaria... Bem, não sabia como descrever. Ela se deitara na terra
seca de altitude com o sol a pino e o calor em brasa da gigante vermelha a
milhares de quilômetros irradiando visivelmente a seiva aglutinada das árvores
atrás. Ela sentiu viva e morta ao mesmo tempo, e não tinha refletido sobre isso
então. Estava viva, mas o que era de fato isso. O que poderia retirar de uma
afirmação frugal e desimportante como tal. Nesse mesmo instante, voou para a
sua cabana, agora um tanto diferente. Colorida de uma forma tão simétrica que
chegava a se tornar tediosa. Olhou para a água do telhado e apertou os olhos,
próximo de fechá-los. Natureza entrou e o Criador estava perto da porta como se
a esperasse.
— Oi. — disse ela com a voz sem graça.
— Ahá. Você chegou bem na hora. — Ele se dirigiu
rapidamente para uma mesa transparente e indestrutível, que havia inventado na
noite anterior. Era à base de um novo componente fora do roteiro da história e
do tempo, e que mudaria tudo. Materiais indestrutíveis estão para além da
manipulação, exceto se possuir um poder trapaceiramente alto para destruir o
indestrutível e desmistificar paradoxos. Esse parecia ser o caso. — Eu
estava trabalhando em algo e gostaria que você visse.
— O quê? — sua voz era tão desinteressada quanto
demonstrava seu corpo. Queria gritar, mas não seria de grande ajuda porque
conhecia os efeitos de gritar desde que criara o universo.
— É interessantíssimo. Um novo design para algo que você
ama. Como percebi que estava chateada hoje cedo, decidi fazer algo para você.
Veja. — Ele retirou de uma gaveta qualquer embaixo da mesa um objeto oblongo e
irreconhecível. Natureza o apalpou Era duro e talvez oco, mas de fato não sabia
o que era.
— O que é isso? — Ela perguntou.
— Isso é o nosso menelin.
— O quê?! — Exclamou Natureza veementemente. Segurou a fruta
horrenda com força.
— Alterei alguns defeitos de composição e cor e parece
aprimorado.
— Na opinião de quem? — O Criador moveu as sobrancelhas em
uma ignorância e dúvida completamente verdadeiras. Era com certeza inconsciente
do que fazia, mas plenamente lógico para discernir a desilusão do agrado. Ou
não. Não importava.
— Ué, da nossa. — Falou ele com uma voz de obviedade.
Natureza o fitou com um sentimento arrasador estampado. Não poderia estar
ocorrendo, não com a sua fruta favorita. Ela (nunca ousaria dizer isso para
ele) era mais digna da posição que ocupava do que ele. Ela estava presente
antes de ele aparecer.
— Não dá para comer. Você alterou o gene de
todos? — Ele vacilou. As palavras seguintes foram auscultadas como se
o tempo houvesse se esticado de modo que cada gota de chuva pudesse ser
estudada minuciosamente com os olhos antes de espocar no chão. Elas saíram
lentas, graves e definitivas.
— Está melhor agora. — Natureza ficou boquiaberta ao
terminar de ouvir. Sentiu uma vertigem, o que ela pensou ser perfeitamente
normal depois de se ter um vislumbre do mundo em câmera lenta. Sua fúria se
tornou grande demais para ser contida em espaço tão pequeno quanto sua cabeça.
Atirou a fruta na parede resistente e ela se partiu em duas. Deixou que o seu
sentimento fosse conduzido e destruiu a sua agora não tão amada cabana e, quase
do mesmo modo, Natureza saiu pela porta e voou rumo aos céus, e o universo, em
algum logicamente bem longe daquele, permitindo ao seu companheiro os anos de
isolamento criativo que ela considerava necessário para ele. Ele a viu partir
sem entender, com os olhos austeros, a boca atenuada. Desatento, pegou um
pedaço do novo menelin e comeu-o. Sua própria ignorância o obrigou a isso.
Cuspiu logo em seguida. Curvou-se de modo espasmódico, e viu o céu por Natureza
havia deixado seu rastro pálido e esbranquiçado e desaparecido da borda da
galáxia.
6.
Com seus planos subformados em sua submentalidade, moveu-se
pelas encostas firmes e cautelosas, desenhadas e construídas há pouco tempo
pela designer do tempo-espaço em uma época não tão remota — ontem,
ele comentava consigo — e, conquanto relembrasse rasamente de quem se
referia em sua mente — já que nunca conversava com as pessoas —, não
pensava precisamente no que fazer a respeito; apenas a vontade incessante de
destruição forjava um sentimento subconstruído. Ele notou que se submetia a um
tipo de submissão subnormal na hora de se subreferir. Calou a mente e
continuou.
Estava
distante de seu berço e mais próximo do que poderia imaginar de seu intento:
uma pequena savana na qual a mescla entre deserto e floresta se era presente;
ele pensou. Foi uma péssima ideia, complementou. Ele estava se tornando alguém
em especial diferente e aparentemente estava a par disso. Quando chegou à única
árvore em meio à uma vastas seleção de um terreno bege e alaranjado recoberto
por folhas caducas de ciprestes longínquos remexidas pelos vendo do norte, que
sempre perfaziam o mesmo percurso àquela época do ano. Era apenas uma questão
de obter dados, ele pensou enquanto perpassou os desníveis com uma dificuldade
amena. Aquele cipreste em específico não era o seu objetivo, porém observou-o
de dos galhos às raízes fincadas.
Ele
desvelou-se outra vez tanto quanto fez durante todas as reflexões a caminho do
ponto, e caminhado o mesmo percurso há anos desde a criação. Sim, ele estava
presente, mas não isso não lhe parecia tão relevante agora. Andou mais,
deslocando para longe do cipreste. Havia um riacho à frente, que também não era
seu destino, mas o que se localizava entre o riacho e o cipreste. Àquele ponto,
a árvore se assemelhava a mero detalhe de uma pintura idílica, com a árvore
solitária em meio a uma abundância de terra vazia. Belo? Quem sabe. Estava
chegando.
Depois
disso, ele decidiu, nunca mais eu farei isso. Mas o que então poderia lhe
preencher a rotina? Nada lhe era tão mais importante que não fazer nada de
importante, exceto seus resmungos habituais, que tinham espaço vitalício na sua
ditadura da consciência. E que ditadura, ele apreendeu o pensamento como uma
façanha insólita. Quanta censura a consciência incumbe ao subconsciente — e
outra vez se subnominando; não conseguia evitar. Eu já sei, ele atinou, eu irei
fazer a troca mais simples. Apena um desvio semântico padrão: tornar o
subconsciente consciente e libertar o torto encarcerado.
Um
olho reluziu no crepúsculo da noite. O corpo retorcido esquálido a que os
pertenciam andou até onde havia um pequeno círculo em evidência, assim como — e
na essência também — uma marca-d’água no esboço do universo. E então cedeu
alguns segundos para se certificar de que se tratava do que procurava, a
analisou as pétalas prateadas e formato peculiar de rosa e, com seu pé,
esmagou-a de maneira impiedosa e repetiu o ato uma dezena de vezes. Riu
histericamente. Assim que concluiu, sentiu como se a terra o consagrasse como
seu pai, para purgar as preces do retificado. Imaginou um universo torto e
ficou ainda mais feliz. Morte, ele pensou, emocionado, morte e escuridão.
7.
Natureza estava flutuando. Mas o que, na ordem cósmica —
satisfação mais elementar —, ela desejava? O que, para ela, poderia ser tão
ausente? Em suma, havia edificado planetas, estrelas, buracos negros
dentre um rol infinito de outras minúcias, dimensões e tempo. A verve criativa
que dormiu durante séculos estava florescendo e ela estada sedada por um brilho
amarelado, destilando matéria viscosa, como um elixir do sonho. E dormiu.
Quando muito acordaria em outro lugar, em outro mundo. Um som abafado proveio
de algum lugar, distorcido com um grito em uma atmosfera rarefeita.
— Ei! — o som ecoou. — Ei! — repetiu com mais força.
Natureza despertou com os sentidos turvos. Sua cabeça girou.
— O-Oi? — ela gaguejou.
— Oi. — a forma imitou. Não havia sentimento na voz.
Natureza se recuperou. Conseguiu ver uma silhueta vaga pairando. De aparência,
era bem semelhante a ela e ao Criador, contudo com algo a mais ou a menos. Mas
isso era apenas uma conjectura. A forma era idêntica a ela. Mesmo assim,
Natureza confiava em seus instintos, e tinha toda razão. Natureza se engasgou,
inebriada pelo ar do vácuo. Esse paradoxo lhe veio à mente e ilustra
perfeitamente o seu estado naquele segundo.
— Qual o seu nome? — A forma perguntou com uma voz
irresistível, era doce, calma e paciente.
— Meu nome é Natureza. — Respondeu. Natureza se sentia
esgotada. A nuvem de realidade estava se dissolvendo e ela começou a retomar a
consciência. — E o seu?
— Você precisa me dar um. — A voz reverberou. Essa
afirmativa provocou um estalo em sua mente. Nesse instante, a vista de Natureza
retornou e ela encontrou forças para se erguer e mirar em volta. Havia uma
menina sem roupas, pintada com múltiplas cores, de cabelos negros e olhos
inocentes. Aquela também era a primeira vez que Natureza via um corpo despido.
Deu uma olhadela no ambiente. De todos os lados, havia hectares de terra,
recobertos por um manto verde e um império arbóreo sem precedentes. — Você não quer
me dar um nome? — A vozinha infantil interrogou novamente.
— S-Sim, claro. — ela gaguejou. Levantou-se rapidamente e se
recompôs. — Seu nome vai ser... — Natureza esperou alguma reação abjeta da
menina à sua divagação, mas seu rosto continuava esperançoso e imutável. —
Tury... Eh... Tury-pan.
A
menina sorriu com satisfação.
— Sim, senhora. — concordou Tury-pan, reverenciando-a. —
Esperamos a senhora há bastante tempo. — a menina lhe estendeu a mão. Natureza
estava à beira de um ataque de pânico. O que, afinal, havia
ocorrido, e onde estava? Mas talvez isso não fosse tão importante. Ela segurou
a mão da menina. Havia alguém à sua frente que podia pensar e dialogar e, antes
de tudo, diligente. Esse, no entanto, era um sentimento estranho. Apesar disso,
a mão era macia e morna, confiável. A menina puxou e Natureza se deixou ser
guiada.
— Quem avisou que eu chegaria? — indagou Natureza. A menina
sorriu e olhou para ela.
— Você. — a menina disse, por fim.
8.
— Você criou tudo isso. — Tury-pan começou a contar. Vales
altos com barricadas de terra delineadas pelas chuvas e pelo ar que as raspava.
Atravessaram o caminho mal iluminado entre as muralhas. Vez por outra, Natureza
tropeçou em algumas pedras no caminho. Tury-pan era forte em consideração ao
tamanho. Ajudou Natureza a se levantar. No caminho, algumas ravinas haviam se
delineado no sopé dos montes em meio à chuva torrencial. As orlas ficaram
cheias. O céu azul, manchado pela metade com nuvens branco-acinzentadas,
transpôs-se vagarosamente pelo firmamento e, tão habitual quanto a distância
entre os astros, havia o sol. Ele, por si, completava o acabamento da paisagem.
— Há quanto tempo me esperam? — Natureza indagou.
— Eu não sei. Mil? Milhões? — parecia improvável. Enquanto
isso, Natureza teve um sonho eterno... E finalmente entendeu. Quando libertou
seu éter pelo espaço, suas memórias, sonhos, desejos vagaram intermitentes e,
por meio de todo o fluido criativo, as moléculas se agruparam em um sistema
planetário, sucedido por uma pequena estrela circundada pelos restos de si
mesma e de outras estrelas avizinhadas. Planetas pequenos, gigantes, cometas,
asteroides, nada fora do comum, a não ser por um único e minúsculo planeta.
Elas
chegaram ao topo da montanha e Natureza sentiu a brisa desviar de seu corpo
ouvindo-a assobiar de leve em seu ouvido. Ela riu em regozijo interno, era uma
experiência estonteante para ela. Natureza olhou para Tury-pan e murchou. A
menina caminhava de mãos dadas como uma criança, mas esboçando menor entusiasmo.
Na verdade, Tury-pan parecia se encontrar em um mundo bem diferente. Tinha uma
expressão séria (até demais para uma criança). Quando muito, sorria de maneira
insossa. Natureza sugeriu, até certo ponto correta, que, assim como uma pessoa
idosa é incapaz de se surpreender com algo e é levada a rir pela inocência de
quem ainda se surpreende com as belezas e as intempéries da vida. Estava em
casa, ela concluiu, e jamais alguém poderia se extasiar com algo tão rotineiro
como a própria casa.
Na
amplidão à frente havia escarpas distantes que aparentemente criavam um cercado
em volta do vale, que tinha poucas árvores, apenas uma relva curta. Por cima do
tapete verde, ao lado de árvores altas e cheias de folhas longas, havia uma
aldeia. O sol começou a começou a desaparecer no fim do horizonte visível, com
o alvorecer deitando-se entre os montes. O fim da trilha estava próximo. Os
únicos sons no silêncio eram os grilos ruflando as asas e os crepitares das
quando pisavam em algumas delas agrupadas. A noite começava a cair.
— É logo ali. — Disse Tury-pan, lançando o indicador para
construções simples feitas de palha seca e madeira a cinquenta metros. Pontos
de luz alaranjada se perfilavam no anoitecer. Natureza pôde enxergar uma trilha
entre as gramíneas e contemplar pegadas envelhecidas pelo tempo no barro. Andou
com cautela nas pontas dos pés, para não afundá-los no solo lamacento. Quando
chegou próximo o bastante, pôde ver que os pontos luminosos eram, em verdade,
algo que a sociedade local havia descoberto com as tempestades e seus raios que
pendiam sobre as árvores. Era diferente de tudo o mais que já haviam visto. Era
a revolução se aquecendo em lentas labaredas.
— O que é isso? — Perguntou Natureza.
— Chamamos de Fogo. — Respondeu Tury-pan.
De
fato, interessante. Os habitantes da pequena aldeia viram a sua chegada e se
arrebataram. Tomaram posições rijas e eretas, quase defensivas, conquanto não
fossem agressivas (pelo contrário, pareciam mais maravilhados que ameaçados).
Um dos homens, com idade avançada, que utilizava um aparato de penugem colorida
e a pela coberta com tintura natural, se aproximou de Tury e Natureza.
— Abá-pe endé? — ele perguntou. Natureza lançou a hipótese
de que fosse talvez um cumprimento amistoso, mas logo sugeriu que ele estivesse
perguntando quem ela era. Estava certa. A menina puxou a mão de Natureza,
chamando-a. Ela se agachou até ficar do tamanho dela. A menina procurou seu
ouvido e sussurrou. Ela ouviu atentamente e se levantou. Não tendo outra opção,
transmitiu:
— Ixé Ybý Nhandesy. — O velho arregalou os olhos.
— Ixé Tury-pan. — Afirmou Tury enquanto sacudia a cabeça. No
mesmo segundo, o velho passou uma mensagem ao resto da tribo, que foi levada a
delírio. Houve bradados de homens e mulheres erguendo tochas e arcos, tomados
por ímpeto. Eles gritaram quase a mesma frase que Natureza proferira. Ela não
compreendeu coisa alguma e é provável que ficasse ali flegmática pelo tempo até
que alguém a retirasse dali. Esse alguém foi Tury, que repuxou-a para dentro da
tribo. Era um conjunto extenso de quarenta ocas. Os aborígenes manifestaram sua
glória içando fogo em um lote de palha de seca, galhos e troncos que outros
membros haviam acabado de providenciar.
Em
poucos minutos, Natureza estava sentada junto a um grupo de quinzes homens e
mulheres reunindo-se em torno de labaredas altas e bruxuleantes. A noite tomou
posse do firmamento e as constelações cintilavam deslumbrantes. Aquele era uma
nova perspectiva para Natureza, pois as vislumbrou de um modo nunca antes
visto. Apesar disso, em pouco tempo havia perdido o interesse de vê-las. Era
algo desgastado aos seus olhos, objetos imensos e distantes, que pareciam
apenas trazer más lembranças. Olhou para o resto dos seres à sua volta. Notou
desde o começo que todos os resentes não faziam ideia do que fossem. Não havia
como saberem, mas ela não cismou com isso, apenas se sentiu deslocada. Tury
sentou do seu lado na fogueira e o sentimento passou. Estava comendo uma fruta
roxa e dura; na verdade, mordiscando a casca.
— Como você está?
— Tupã ne anama. Tupã Ybý Nhandesy. — Gritava uma voz entre
um som e outro.
— O que eles estão dizendo? — Perguntou Natureza.
— É relativo ao nome que você me deu. Eles chamam de Tupã. Deve
ser mais fácil que Tury-pan. De algum modo me consideram especial. — Tury pegou
outra frutinha. Ela tinha o tamanho de uma bola de gude. — Ah, e Ybý Nhandesy
significa Terra Nossa Mãe. — Tury apontou o indicador e tocou-a perto da
clavícula. Esperou que ela compreendesse, mas não ouve resposta.
— Como você me compreende?
— Não sou como os outros. Oîkoé, incomum. Você deveria saber
disso. — Natureza expressou desconhecimento completo. Natureza sempre almejou
ser parte de algo e, naquele instante, uma multidão de seres que ela mal
conhecia também tinha o desejo de ser parte dela, e de certa forma eram. Ela se
sentiu finalmente em casa. Quando todos estavam sentados, Natureza invocou seus
poderes novamente, fazendo nascer ao lado da fogueira uma linda rosa prateada.
A mesma rosa de seu planeta. O povo se alevantou observando a tudo sem piscar.
Por intermédio de um grito, todos vibraram novamente. O festejo continuou,
assim como os nativos, também se negasse a piscar.
— O que você... — ela ia dizer quando um grupo de homens
enfileirado a interrompeu. Todos ficaram cabisbaixos frente ao horizonte.
Tury-pan se apercebeu e levantou rapidamente, ficando na mesma posição. Collie
foi a única a olhar para cima. Tury-pan a repreendeu com o braço para que
fizesse o mesmo, mas Collie não redarguiu o gesto, sem dar atenção. Afrontou-se
mais para enxergar. Na amplidão distante, algo mirar o piscar de uma estrela no
céu e a luz começar a invadir os céus, crescendo paulatinamente. Quando se deu
conta, havia uma luzente forma iluminada pairando no céu, como uma fênix. Ela
se moveu pelo céu de modo ritmado, ressoando uma onda mística que tremia os
grãos de terra. Ela dançou em um espetáculo de fogos glorioso e exagerado.
Nesse
instante, os aborígenes começaram a cantarolar músicas ritualísticas em idioma
local, ao ritmo de instrumentos esféricos com cabos de miriti e tambores de
couro animalesco. Tury repetiu o gesto de censura e puxou Collie pelo ombro,
mas, quando Collie finalmente olhou para ela, Tury percebeu que era tarde. A
tribo continuou cantando. A jovem Tury acostou-se com o queixo na clavícula no
ombro de Natureza, em parte por afeto, e sussurrou a tradução de um verso.
— Nós somos você, e você somos nós.
A
forma luminescente executou um arco descendente e para baixo e pousou a dois
metros de Natureza eclodindo em meio a uma luz branca tão ofuscante e nitente
quanto a luz de uma estrela, que cegasse a curiosidade de qualquer olhar, mas
Natureza não se abateu e continuou de observar. A luz empalideceu e uma mulher
brotou da luz. Se Natureza não tivesse passado dias em meio às florestas e
observando seu reflexo no lago, no dia em especial antes de o Criador tê-la
encontrado (após isso, Natureza se privava de qualquer autocontemplação),
poderia não ter reconhecido o quanto aquela mulher era parecida com ela mesma.
Na verdade, se fosse mais atenta, diria que ela era ela mesma. A luz se apagou
e, com o sinal, as canções silenciaram.
— Natureza. — a mulher na luz exprimiu com alegria. Natureza
corou e, com a surpresa, seu corpo se deslocou para trás, desejando não estar
ali. — Seja bem vinda a Megazeld.
9.
Tury-pan a recepcionou com uma saudação e a mulher de fogo
imitou o gesto e então Tury se dispensou.
— Você é a líder?
— Eu aguardei sua chegada há anos. — a forma feminina lhe
abraçou. — Meu nome é Escuridão. Eu assumi a sua forma... Era uma piada interna
sobre “assumir a forma conhecida”. No seu caso, você é sua única forma
conhecida (ou não) — ele riu maliciosamente. Foi quando notou que a voz era o
divisor entre masculino e feminino, mas concluiu que essas resoluções ambíguas
sobre identidade eram descabidas perante as atuais circunstâncias.
— Venha. Vamos entrar. — disse Escuridão, despachando seu
público para suas respectivas ocas e guiando Natureza pelos ombros até a oca
magna, uma estrutura similar às coberturas utilizadas em antigos Circos, com
entradas de bordas arredondadas e grandes.
A
amplidão da oca, um tipo mal iluminado e recôndito com o chão de terra,
construída com madeira e palha. Era muda e sombria. Escuridão capturou um
pedaço de pedra ígnea e atritou-a com a outra e, de repente, as faíscas
incendiaram receptáculos e o fogo iluminou e aqueceu o interior. O teto era
côncavo como que no interior de uma semiesfera e Natureza notou por todos os
cantos as pinturas rupestres grafadas, inclusive no cimo, a vinte metros de
altura.
— Ideia genial usar o fogo para iluminar. — comentou
Natureza. — Já contei que fui eu...
— Sim, eu já sei. — interrompeu Escuridão, carregando dois
cubos de madeira e ajustando-os em uma mesa. Nesse momento, havia tomado sua
forma masculina, ainda que não fosse, por razões lógicas, sua forma original.
— Ah.
— Bom. — Escuridão disse, sentando-se em um dos cubos. —
Siga-me. — Natureza obedeceu e do mesmo modo aceitou sem titubear uma cuia
oferecida pelo anfitrião. Entornou o líquido viscoso e salgado. Era delicioso.
Quando terminou, sua boca estava dormente.
— O que deseja falar comigo? — Natureza perguntou. Escuridão
se divertiu e apontou para as imagens nas paredes.
— Você vê? — ele perguntou. Natureza observou com mais
atenção. Havia uma gravura de cordas e ondas espiraladas e comprimidas em uma
esfera, delicadamente entalhadas.
— Você conhece, não é?
— Isso é a partícula primordial.
— Exato. A energia que move o universo proveio dela. Agora —
Escuridão procurou em outro recanto obscuro da oca e levou-a consigo. —, você
vê aquelas ali?
Dessa
vez, era intrinsecamente diferente. O desenho estampava uma área extensa por todos
os lados, uma forma esférica e negra. Em todo, a completa escuridão sem fim,
era o que parecia dizer, mas Collie não depreendeu informação alguma; apenas a
observou atentamente.Escuridão interviu.
— Você criou o universo para destruí-lo. Criou o tempo para
matá-lo. Criou a vida para morrer. — Escuridão disse, irritado.
— O quê?
— Eu a trouxe para cá. — Escuridão gargalhou e espanou um
pequeno cubo feito com casca de madeira e suspirou sentando-se. O espaço aqui
foi feito para turvar sua mente. Deixe estar, por assim dizer. Isso inebria
você, não é? Tão temperamental, Natureza. — sua face estava armada. Ele se
curvou alguns centímetros, o suficiente para Natureza dar dois passos para
trás. — Ahhh, Natureza. Eu aguardei você a vida toda. Você me ignorou no começo
de tudo. A minha vontade, o meu desejo, você me expulsou.
— Q-quem é você? — Natureza tremeu. Afligiu-se de forma
quase involuntária e fazia algum tempo. Não conhecia a sensação profundamente
para se alarmar, mas a conhecia casualmente para temê-la.
— Eu? Eu sou você. E sou superior a você. — ele se abaixou,
grunhindo, e pescou de baixo da mesa um objeto oblongo coberto por um pano
amarronzado. — Eu sempre odiei tudo. Porque você em todas as suas obras, em
tudo o que você criou, sempre foi falha. Nunca conseguia fazer nada como
deveria.
Escuridão
colocou o objeto misterioso embaixo do braço e se ergueu. Caminhou em passo
gradual até Natureza. Calmamente, segurou-a pelo queixo e a beijou na boca. O
seu afeto veio tão abrupto quanto pareceu à Natureza, mas ela não se esquivou.
Não houve tempo. Uma luz avermelhada fez-se surgir entre os dois e Natureza
conseguiu sentir o poder de uma corrente elétrica vibrar no interior de seu
ser, de forma única e bizarra.
— Isso é amor de verdade. — ele falou, com o rosto
próximo. — Você sabe o que é isso? — ele perguntou, apontando com os olhos
o objeto que levava nas mãos. Natureza sinalizou que não.
— Isso é um lembrete seu para o universo. Eu descobri suas
utilidades há algum tempo. — Escuridão disse, virando as costas para ela e
pondo-se a desvelar o tecido. Sem mostrá-la para ela, Escuridão permaneceu de
costas para ela como se contemplasse a beleza oculta de uma pintura proibida, e
era exatamente o que ele imaginava ser aquilo.
— Enquanto eu passeava por esses campos — ele comentou. —
percebi que o que dá a vida também pode matá-la, mas o que vive não pode
morrer. Notei que a eternidade é a única saída desse mundo decrépito.
— O que você quer dizer, eu não entendo. Diga-me! — gritou
Natureza, em pânico.
— Posso sentir sua intuição lhe corroer, como se ela
vibrasse em mim. No fim, nós somos o mesmo ser. E você sabe... Eu sei que sabe.
Por que se nega a acreditar? Você se resguarda. É fraca.
— Eu não sou!...
— Pss. — ele a apaziguou, colocando o dedo em seus lábios.
— Parte de você se desloca, parte de você não respeita nada.
Você aceita humilhações com um sorriso e uma fruta paliativa. — ele
deu as costas. Natureza não se dispôs a redarguir as palavras de Escuridão,
comprovando, por fim, sua tese. — Acredite, é complexo para mim — o pano estava
em seus braços. Ele o apalpou e alisou, como um cachorrinho. — Eu tenho um
plano, mas para que ele seja posto em prática — então, em uma única inventiva
hábil, ele se virou para ela e expôs um objeto longo e delgado, reluzente à luz
das lamparinas. Escuridão a pôs frontalmente sob o rosto e fio da lâmina não
podia ser visto. Ao ser observada de través, parecia cor de prateada, reflexiva
aos olhos submissos de Natureza. — Você deve morrer. — ele rosnou.
Com um
único talho, Escuridão a seccionou-a em uma diagonal que atravessou o estômago.
As metades de seu corpo inerte tombaram. Em seu rosto, a expressão antônima à
de Escuridão, o canto dos lábios voltado para baixo, olhos arregalado de pavor
e a tenra inocência, aplainada por conformação e renúncia. Escuridão rodopiou a
espada entre os dedos e lançou-a para longe, parou em posição de ataque, rindo
e vangloriando-se, e somente então revelou sua verdadeira. A sua forma se
transmutou para a conhecida, a santificada imagem do criador. Mas como? Deus
nunca amou a Natureza, sempre nutriu remorso de seu poder e. Sempre contradisse
suas leis. Então fez o que considerou adequado, matando-a para sempre. Foi
quando notou que não havia ouvido o som da espada tocando o solo. Pressentiu o
vulto pousar atrás de si, já há muito atrasado, e o som do vento sento cortado
por um afiado objeto.
— O que você fez? — disse Tury-pan, com a espada nas mãos. O
Criador deu um sorriso maligno.
— Você não foram criados pela Natureza. Foram criados por
mim. Por mim, entenderam! — respondeu o Criador. Mas Tury-pan apalpou a clava
da espada, moldada com todas as Rosas de Megazeld, toda a representação da
Natureza moldada na arma. Escolha entre a vida e a morte. Tury-pan, a humana, a
primogênita. Ele a matará em seguida, porque é bela e poderosa — e o Criador
não aprecia poder. Aprecia a degustação Gideônica da lama, os joelhos nas
rochas. Não! Nada disso ocorrerá. Tury-pan aproximou-se do Criador e enfiou a
lâmina profundamente em seu coração.
— Louca. Também criei muitos de vocês. — o Criador
arquejou, borrifando saliva e estrebuchando.
— Não. Você se engana. Nós Criamos muitos de vocês. —
ela sorriu e o corpo do Criador caiu com seu sangue estrelado. Ninguém chorou a
queda de mais um ídolo insosso.
10.
Nos recantos mais sombrios, que se estendiam por alguns
quilômetros de floresta amazônica, uma criança bebeu uns goles de água com uma
conchas nas mãos em um córrego. Uma arara azul passou chilreando. A tecnologia
finalmente permitira aos cientistas catalogar todas as espécies de animais e
plantas presentes ali. Antes, isso poderia ser desafiador. Com um ecossistema
mais vasto que os de planetas inteiros em zonas similares, a floresta era
espiada por olhares ambiciosos.
As árvores de terra firme ficavam quase sempre em terreno seco. As folhas
mortas que caíam fertilizavam o solo argiloso. Ali, a morte, representava
alimento, vida. Sem a morte, não poderia haver vida. Havia outras plantas que
eram regadas eventualmente pelos rios e abandonadas na estiagem, quando as
águas partiam para uma viagem de férias. Por último, havia as mergulhadoras,
sempre embebidas em água, como as vitórias-régias. Quanto mais se aprofunda em
uma floresta assim, menos de tudo o que se vê pode ser a verdade.
Tury-pan desfilou em rasante à margem do córrego, que tinha quase três metros
de largura e poucos centímetros de profundidade. Era semitransparente e
esverdeado, podia-se ver areia e pedras de calcário no fundo. Collie parou no
ar; a menina se inclinou para fora, exerceu força para sair; escorreu pelo
corpo de Collie e cravou os pés no chão. Collie continuou no ar e percebeu a
inquietação da menina. Voou suavemente até uma árvore alta e colheu uma fruta
amarelada e carnuda. Levou para a menina, que bebeu alguns goles de água e se
jogou no chão, um tanto enlanguescida.
— Tury, posso fazer uma pergunta? — questionou a
menina.
— É claro.
— Por que tudo existe? Por que estamos aqui. — e Tury
pan a fitou com ternura e disse:
— Porque assim é a Natureza. Ela é tênue como uma rosa. E
você nunca deve perdê-la e sempre deve acariciar suas pétalas.
Nunca deixe perder sua rosa
Nunca deixe perder sua rosa
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